O livro de crónicas de Clarice Lispector, ‘A Descoberta do Mundo’, começa com um pequeno parágrafo em que a autora conta a história de uma mãe que procura silenciar e adormecer um filho com fome. Na troca de argumentos entre mãe e filho, o diálogo vai ficando menos doce, até terminar num raspanete, seguido de silêncio dos dois. Ela, pensa-o dormindo. Ele, tem medo de voltar a queixar-se. Embrenhados no silêncio e no cansaço, adormecem os dois. Mas a autora não esconde a revolta em relação ao que causou o silêncio que precedeu o sono. A fome. Há vários tipos de fome. Tal como há vários tipos de silêncio. Tal como há vários tipos de revolta. Por esta vez, a fome pode ser a incerteza. O silêncio, pode ser a desorientação, perante a incerteza. E a revolta… Bem, a revolta, pode ser a revolta. Perante a incerteza.
Não posso. Não posso pensar na cena que visualizei e que é real. O filho está de noite com dor de fome e diz para a mãe: estou com fome, mamãe. Ela responde com doçura: dorme. Ele diz: mas estou com fome. Ela insiste: durma. Ele diz: não posso, estou com fome. Ela responde exasperada: durma. Ele insiste. Ela grita com dor: durma, seu chato! Os dois ficam em silêncio no escuro, imóveis. Será que ele está dormindo? – pensa ela toda acordada. E ele está amedrontado demais para se queixar. Na noite negra, os dois estão despertos. Até que, de dor e cansaço, ambos cochilam, no ninho da resignação. E ei não aguento a resignação. Ah, como devoro com fome e prazer a revolta.
Clarice Lispector – ‘A Descoberta do Mundo (Crónicas)’