Primeiro, pensei que eram ‘fake news’, mais uma série de documentos falsos, falsificados, para porem a correr uma não-notícia, ou o contrário da verdade. Mas, à medida que mais e mais gente foi publicando, sem nenhum desmentido, a coisa passou a ser tão real quanto, à primeira vista, parece ser. Segundo o que leio, e que não vejo por que razão não seja verdade, as instâncias europeias recomendaram aos Estados Membros que dedicassem 2% (dois por cento) dos fundos comunitários do novo quadro (em Portugal, criativamente, resolvemos chamar-lhe ‘bazuca’, o que é curioso), pasme-se, à Cultura. Já nem falo no objectivo dos 4% do PIB… Mas, avante. No Parlamento português, o PSD apresentou um projecto de resolução que consagre este objectivo nacional, até porque, no contexto da pandemia, a Cultura foi dos sectores mais afectados (como muitos, e bem, diziam, os primeiros a fechar, e talvez os últimos a reabrir a actividade), a que o Estado não conseguiu dar uma resposta minimamente suficiente (não falemos sequer da (in)utilidade do Ministério da Cultura). A proposta dizia o seguinte: «Sendo o setor cultural e criativo uma prioridade no plano de recuperação económica proposta pela Comissão Europeia, e tratando-se de um sector profundamente atingido e para o qual, a nível nacional, não foi possível mobilizar recursos suficientes para reparar danos profundos; Considerando a Resolução “Recuperação Cultural da Europa”, aprovada no Parlamento Europeu a 17 de Setembro de 2020, que apela à Comissão e aos Governos dos Estados Membros a dedicarem ao sector e às indústrias culturais e criativas pelo menos 2% do total do Plano de Recuperação e Resiliência, sublinhando que esta percentagem deve refletir a importância dos sectores e indústrias no Produto Interno Bruto da União Europeia, abrangendo 7,8 milhões de empregos e 4% do PIB, e reiterando a necessidade de manter a continuidade dos sectores», e depois continua… Até aqui, tudo muito bem. Não fosse a votação trazer-nos uma surpresa. Os 108 deputados do PS votaram contra. Sim, é verdade. O Partido Socialista votou contra este projecto de resolução. A Iniciativa Liberal, absteve-se. Todos os restantes deputados votaram a favor. O documento foi aprovado. Com os votos contra do PS. Anotemos.
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11 de Março de 2021 – Desconfinar, como?
Há quinze dias, o Primeiro-Ministro anunciou que ia dar a conhecer hoje o plano de desconfinamento. Cumpriu. Curiosamente, cumpriu, num ‘timing’ perfeito, com o Presidente da República ausente do país, acedendo ao pedido que ia sendo gritado por toda a parte: reabram-se as escolas. O Primeiro-Ministro não esteve com meias medidas, e resolveu decretar que se reabram as escolas em cerca de quatro dias, sendo que dois deles são fim-de-semana. Com isto, conseguiu, fácil e rapidamente, angariar o voto dos muitos pais e encarregados de educação que suplicavam pela concretização desta medida, beneficiando do silêncio forçado do Presidente da República, que queria que a coisa acontecesse mais devagar. Mas a pressa é inimiga da perfeição. E não basta anunciar medidas, para depois ver-se. Uma questão tão simples como o uso da máscara, sim ou não, e em que contextos específicos, ou sobre quem decide sobre o assunto, não foi sequer abordada, nem tão pouco questionada pela comunicação social. Depois de respondida a questão da reabertura, esta, a do uso ou não da máscara, poderá já não ser tão consensual entre os pais e encarregados de educação. Ficará ao critério das escolas? Ficará ao critério dos pais? Como se vai processar o convívio entre quem usa e quem não usa? Basicamente, o Governo quer que se implemente uma medida em poucos dias, sem dizer uma palavra sobre como se deve implementá-la. Assim, é mais fácil acusar os portugueses de falta de sofisticação na recepção da mensagem.
10 de Março de 2021 – Astor Piazzolla
Astor Piazzolla faria (faz) amanhã 100 anos. A sua história de vida, a sua história musical, são lições sobre como a transformação da lagarta em borboleta não é um processo sem dores, mesmo que seja feito com o maior refinamento e cuidado. Quando se fala em Piazzolla, o mais fácil é lembrarmo-nos de ‘Libertango’ ou de ‘Adiós Noniño’. Mas eu lembro-me, antes de qualquer outra peça, de ‘Oblivion’. Daquela melodia que, pouco a pouco, vai ganhando profundidade. Que se vai espalhando, como água. Ganhando espaço. Como a saudade. ‘Oblivion’ é a palavra que os argentinos têm que fica mais próxima da nossa saudade. Essa saudade que, a espaços, faz rodar as rodas dentadas dos sentimentos. À medida que a música flui, é como se a respiração fizesse, aos poucos, rodar a saudade, percorrendo o corpo. Distendendo e comprimindo. Até passar a fazer parte de nós. Depois, vem o sorriso da lembrança. Uma a uma, as imagens que vão saindo da memória para quase se tornarem reais. E vermos que tudo isto faz parte. De nós.
9 de Março de 2021 – De como a pandemia dá cabo do psicológico e do social
Ouço hoje, com muito interesse, o espaço de opinião de Daniel Oliveira na TSF. Lembrando algo que raramente ou nunca se lembra, mas que , certamente, todos estamos a sentir na pele, mais ou menos, com consequências mais ou menos complicadas. Os portugueses estão a sair de casa, estão a ‘furar’ o confinamento. Mais do que irresponsabilidade, este é um sinal de que a pandemia está a mexer com a dimensão psicológica e social de cada um de nós. Muitos de nós, vivemos com medo há mais de um ano. É muito tempo. Demasiado. Ao mesmo tempo, tornou-se banal falarem-nos de mortes, muitas. De internamentos, muitos. E, progressivamente, as vítimas desta pandemia deixaram de ser pessoas, famílias, comunidades, e passaram a ser meros números, muitas vezes sem um funeral com os ritos apropriados. Sabemos todos que os profissionais de saúde estão a trabalhar para além dos seus limites. Sabemos todos que é muito difícil tomar decisões políticas em cima deste caos e desta incerteza permanentes. Mas também sabemos que é muito mais fácil responsabilizar-nos, colectivamente, pelo que corre pior, para que não repitamos erros, nem, com isso, pioremos a situação. O que ninguém pensou foi que, para além de todos os comentadores, com as medidas certas à mão, para fornecerem a quem precisar, para além médicos especialistas em vírus, pandemias e cuidados intensivos, para nos falarem dos aspectos científicos e do impacto na saúde de todos, talvez fosse preciso também termos gente a falar sobre como contornar os terríveis impactos psicológicos e sociais que tudo isto teve, tem e terá.
8 de Março de 2021 – Mulher
Hoje é Dia Internacional da Mulher. É estranha, esta coisa de ter de haver dias para nos lembrarmos das coisas, ou das pessoas. Outra coisa estranha é, às vezes, parecer que temos medo das palavras. Alguém dizia hoje que ainda há circunstâncias em que se ameniza a utilização da palavra mulher. Por essas e por outras, hoje, chega de palavras.
6 de Março de 2021 – Da decadência da arte de mentir
Não consigo passar muito tempo ausente da escrita bem-humorada e refinadamente irónica de Mark Twain. Por isso, não resisti a passar os olhos por «Da decadência da arte de mentir e outros textos», que começa logo com o texto de uma brilhante entrevista, absolutamente ‘non-sense’, e que diz, imediatamente, ao leitor ao que o autor vem. Segue-se a história de vida de um vendedor ambulante de ecos, uma história amorosa, e, algures mais lá à frente, o texto que dá título ao livro. Não tenho muita certeza quanto à actualidade do título. É questionável se a mentira e a sua arte estarão, de facto, em decadência. Mas só para ter a certeza, e para ter a certeza absoluta, a partir do ponto de vista de Mark Twain, já vale a pena a leitura.
5 de Março de 2021 – Mau jornalismo? Olhe que não…
Ouvi, há dias, o debate na TSF, conduzido, como sempre, de forma irrepreensível, pelo meu amigo Pedro Pinheiro. Desta vez, sobre o bom ou mau jornalismo televisivo (em concreto, pelas televisões generalistas), feito durante a pandemia. O debate teve como ponto de partida uma carta aberta de um grupo de jornalistas, que se insurge contra o que considera um «apontar incessante de culpados», uma «falta de respeito pela privacidade dos doentes», uma «sistemática invasão de espaços hospitalares», uma ausência de «informação sóbria», uma «obsessão opinativa», um «tom agressivo, quase inquisitorial», uma «ausência de diferença entre informação, especulação e espectáculo». Este mergulho na questão sobre o que é bom e o que é mau, para além de ser antiga, é completamente infrutífera e inconclusiva. Como diz a canção, e Jorge Jesus também, «é preciso perder, para depois se ganhar», ou seja, para se conhecer o bom, é preciso também conhecer o mau. Só assim se ganham referências. Para além disso, dificilmente alguém teria um conhecimento prévio sobre como se deve fazer bom jornalismo em contexto pandémico. Na sua brilhante introdução, Pedro Pinheiro já foi adiantando a resposta. Alguns dos signatários desta carta aberta foram (ou são) defensores de muitas outras liberalizações, partindo do princípio que já temos maturidade social para optarmos. É curioso como, neste contexto particular, não adoptam a mesma visão. Porque, no fim de contas, «o comando é meu».
4 de Março de 2021 – Dois ditados para uma má acção
Portugal teve o azar de ficar com a Presidência da União Europeia em plena pandemia. Podia, no entanto, ver o lado da oportunidade, mas parece que foi mais fácil ver o lado do oportunismo. Privados de organizarem as cimeiras habituais, com a necessária preparação de salas, da logística, do que é preciso ter como apoio à comunicação social, os nossos políticos optaram por… fazer tudo na mesma. Assim se justifica o gasto de centenas de milhares de euros em equipamentos, em bebidas e até em roupa, ao que tudo indica, para ser usada em eventos que não terão lugar, pelo menos presencialmente. São mais de 260 mil euros em equipamentos para apoio à imprensa, mais de 35 mil euros em bebidas e quase 40 mil euros para camisas e fatos. Pode haver quem diga que ‘mais vale prevenir do que remediar’. Mas também há quem diga que ‘a ocasião faz o ladrão’.
3 de Março de 2021 – Labirintos da Música
Lanço-me à leitura do livro de crónicas do Maestro José Atalaya, onde, rapidamente, nos damos conta de como temos memória curta. Não há muito tempo, Portugal pura e simplesmente extinguiu as suas orquestras, acto que acabou por dar muito trabalho a quem foi juntando as peças, reconstruindo e criando bases para o que hoje temos. E lembro-me de como, há também não muito tempo, numa conversa pública, ao usar a palavra proibida (‘mercado’) quase ganhei lugar no Gólgota, bem ao lado de Cristo na cruz, talvez até mesmo no lugar do mau ladrão. Acontece que, hoje, sob o manto da pandemia, está provado que a Cultura não funciona sem mercado. O Estado, o Ministério da Cultura (existe?), as entidades oficiais vão lançando migalhas aos pombos, ao mesmo tempo que, quem consegue, vai tentando novas formas de levar as artes performativas ao público, através de plataformas on-line, das redes sociais, de um sem número de soluções, que outra coisa não fazem senão voltar (timidamente) a pôr o mercado a funcionar. O tempo passa, as medidas políticas continuam a ser insuficientes, a situação vai tornando o grau de insustentabilidade cada vez maior. E o óbvio continua a ser a palavra de ordem: sem público, não pode haver cultura. Tal e qual foi provado pelo Maestro José Atalaya, nas suas inúmeras intervenções. O que é isto senão uma manifestação de que é preciso haver mercado?
2 de Março de 2021 – Um passaporte que pode discriminar
Acordámos, hoje, com a notícia da possibilidade de ser necessário termos um passaporte de vacinação. A ideia partiu da presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, e traduzir-se-á num documento (eventualmente digital) que permita a reabertura do espaço europeu às viagens entre países de União Europeia. Embora reconhecendo a virtude da medida, não podemos esconder que ela pode conter, ainda que de forma involuntária, uma certa discriminação. Desde logo, porque a vacinação não é obrigatória. Depois, porque não está ao alcance de todos, ao mesmo tempo. Em terceiro lugar, porque pode dar aso a impedir quem não quer, ou, por algum motivo, não pôde ainda ser vacinado, de exercer um direito, sem que, no segundo caso, tenha qualquer culpa. Não estando a vacina (nem tão pouco os testes) ao alcance de todos, sem excepção, pode ser perigoso aprovar o que quer que seja, sob pena de penalizar alguns (a maioria?), com um carimbo discriminatório.