Era uma vez um conto de Natal. Daqueles contos de Natal que o avô lhe contava, quando publicava no jornal. Era frequente saberem um do outro pelo jornal. Mas o que é facto, é que, quando se encontravam, era como se soubessem tudo um do outro, e tudo acontecia de forma fluida e natural. Este é o conto de Natal que ele oferece ao avô.
De onde ele olhava para o mundo, tudo acontecia depressa, e com intensidade. Não havia tempo para nada, a não ser para fazer-se o que tinha de fazer-se, de preferência mais rapidamente do que seria suposto. Eram raros os momentos em que ele podia olhar para outra parte do mundo, onde as coisas aconteciam mais devagar, onde havia tempo para olhar, ver, observar e deixar-se encantar. A todo o momento, ele estava em contacto com o mundo, e o mundo em contacto com ele. As notícias chegavam-lhe, às vezes antes mesmo de acontecerem. As pessoas apareciam-lhe emolduradas em ecrãs de vários tamanhos. Tudo acontecia sem que ele saísse do lugar, e era essa a sua realidade. Uma espécie de linha de montagem da vida. O universo imutável.
De onde ela via o mundo, a paisagem era parecida. O tempo fugia-lhe. O olhar estava quase sempre direccionado para onde tinha de estar. Tudo estava ligado. As caras nas molduras dos ecrãs. Uma espécie de linha de montagem da vida. O universo quase imutável.
Era frequente, a certa altura, um e outro, verem-se como se estivessem sozinhos no mundo. E foi quando aconteceu, numa espécie de acaso, começarem a ver as caras um do outro nas molduras dos ecrãs. Primeiro, em forma de letras, palavras, frases. Depois, imagens. Depois, as vozes foram falando ao ouvido um do outro. Era quase Natal, e o tempo desacelerava, o olhar podia desviar-se para o alto das montanhas, para as nuvens com um resto de neve, para o encanto dos retratos que foram ficando na memória, ano após ano, das luzes que contornam casas e árvores, das montras com cores quentes, dos sorrisos acolhedores das pessoas com quem se cruzavam. Ela, deixava que os sons que ia ouvindo do mundo lá fora lhe fizessem cócegas no ouvido. Ele, inspirava, de olhos fechados e com a satisfação do regresso à criança que nunca tinha deixado de ser, o cheiro da geada nas pedras da rua.
Talvez tenha havido aquele momento em que ‘era uma vez’, mas eles não conseguiam precisá-lo. E não importava. Apenas importava o encanto de redescobrirem esse encanto de driblar o tempo, de olharem para o mundo de outras perspectivas e formas, de olharem para as caras sem estarem nas molduras tecnológicas, de se deixarem encantar, como se as horas fossem a água de um rio, e eles ficassem apenas a contemplar o mundo a partir da margem.
Foi um tempero diferente, aquele Natal. E, ao regressar à voragem habitual, nada foi como era dantes. O tempo passou a ser contado de outra forma. A pressa passou a ser menos apressada. Aprenderam a gerir o ritmo frenético e a olhá-lo mascarados. Passaram a valorizar pequenos gestos. Puderam sentir que aquele Natal de descoberta e de um estender de mão para se abrirem ao outro tem de ser construído em todo o tempo e lugar.
Desde aquele Natal, e dos natais que outros lhes proporcionaram, quando pensavam que estavam mais sozinhos do que nunca, e mesmo mascarados, perceberam o valor incomensurável de um olhar. Que nunca esquece quão profundos são os campos, que os enigmas são resolúveis e que é possível conservar a claridade de um dia de sol, mesmo quando chove. Desde aquele Natal que perceberam, e muito mais em todos os dias que se lhe seguiram, que nunca se esquece um olhar. Ainda que com máscara, podemos continuar a olhar. A ver. A observar. E será o olhar que nos leva ao outro. Que nos permite contar o tempo, a partir das memórias que guardamos e revemos de olhos fechados. Que nos permite, no fim de contas, viver. Esse olhar de Natal. Todos os dias.