26 de Fevereiro de 2015 – Uma espécie de «undertaker»

undertakerO homem estacou diante da porta, como se ganhasse ali raízes. Não falava. Limitou-se a estar ali. Hirto. Cinzento, como o fato que trazia. Engomado, todo ele. Não trazia consigo qualquer expressão. Era como se estar ali fosse explicação suficiente. Os ombros ligeiramente encolhidos, estendiam-se até à pasta que pendia do braço direito, esticado. Procurava, com todo o cuidado, dignificar a profissão. Era, no fundo, cobrador de impostos. Não daqueles traidores bíblicos, nem tão pouco dado a corrupções. Procurava ser impoluto. Sem mácula. Como a cor da pele que o cobria. Era enfezado, com aspecto de picuinhas. ‘A man has got to do what a man has got to do’. Falava pouco, sempre num tom anasalado e irritante, de quem apenas atenta ao pormenor. Fazia as contas de cabeça num ápice, e entregava os dinheiros ciosamente. Toda a sua vida era cinzenta, de um cinzento contagiante. Quase como uma nuvem, desejosa de se estender mais e mais, até cobrir outros, e descarregar em trovoadas de esbandalhar vidas. Ossos do ofício, tinha sido mandado a casa do rei. Afinal estava vivo, e era preciso fazê-lo sentir a obrigação de contribuir para os cofres da cúpula. Ninguém está acima da lei dos cobradores de impostos, pensava ele. Não estava para grandes conversas. Levava o recado escrito, até porque o inglês não era o seu forte, e não estava com grandes disposições para viagens no tempo. Tocou à campainha e esperou a vinda da próxima vítima. Arrastado. Volumoso. Quase como se fosse um amontoado de restos humanos. Enquanto vinha em direcção à porta, o cobrador tirou o papel liso, sem rugas nem dobras, e estendeu-lho. “Senhor Elvis. Estou farto das suas baladas melosas. Preferia vê-lo e ouvi-lo quando ainda era galã. Dentro dos seus ‘blue sweat shoes’. Agora, você é pesadão. O seu penteado ondeado perdeu a piada, diluído na cara bolachuda. Estou farto do seu sucesso. Por que raio ainda é ‘o rei’? O mundo mudou, e você manteve-se decrépito. Se os excessos o tivessem levado, poupar-nos-ia de assistirmos ao seu esvaziamento diário. Vim penhorar a sua existência. Arranje forma de pagar quanto antes”.

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