6 de Abril de 2014 – «Discurso Directo»: A cidade e as serras

logo-ddA dicotomia não é nova. Eça de Queiroz, de resto, extremou bem as realidades, quando colocou, lado a lado a enorme Paris, centro do mundo, e a sua pequena Tormes, centro de um quase imaginário. Hoje, os extremos estão ainda mais vincados, com a «cidade» a querer ser cada vez mais cosmopolita, e a olhar para os das «serras» como seres quase exóticos, e as «serras» cada vez mais desertificadas, a olharem para a cidade como única saída para as dificuldades que encontram, não sendo já suficiente olharmos para a «cidade» do próprio país.

Nos dias que correm, o que mais irrita, nesta espécie de extremismo, é a forma como os «seres» que continuam a não abdicar de viver nas «serras» são olhados pelos citadinos. Tolhidos pela fronteira mental, que podemos situar, por exemplo, no caso de Lisboa, entre Alverca, Santarém e Setúbal, é como se todo o resto do país coubesse confortavelmente na definição de «Portugal Profundo», essa construção mental onde cabe tudo o que é paisagem, no sentido de já não ser muito bem aquilo que interessa.

Pois bem, se argumentos faltassem, uma notícia que surgiu recentemente é argumento suficiente para defender as «serras». Segundo um estudo promovido pela empresa «Tom Tom», ligada aos aparelhos de geo-referenciação, os lisboetas passam 74 horas (cerca de três dias) por ano presos no trânsito. E os números devem pecar por defeito, ainda assim. O mesmo estudo conclui que o que os das «serras» têm como ditado popular («quem se mete em atalhos, mete-se em trabalhos») não podia ser mais verdadeiro. Os que, para fugir ao trânsito, tentam alternativas, acrescentam 50% ao tempo das deslocações. Em Lisboa, o nível de congestionamento ronda os 9% nas auto-estradas e os 27% nos restantes troços. A média global de congestionamento ronda os 26%.

Arouca não tem congestionamento no trânsito. Pelo menos não com uma frequência diária. Felizmente que o temos, quando há grandes eventos. E isso acaba por ser bom. Significa que vem muita gente a terras de Santa Mafalda. E ainda bem que vêm. Porque dessa forma podem ver com os próprios olhos, sentir com os próprios sentidos, que não somos tão exóticos como possa parecer. Que esse Portugal é de facto «profundo». Tão profundo que merece que «os da cidade» saiam da caixa, tirem os óculos que lhes limitam a visão, e verifiquem que é nesta «profundidade», feita à custa das identidades locais, que o país pode passar a fazer sentido. Porque enquanto continuarmos a ser governados com os óculos dos citadinos, como números em folhas de «Excel», continuaremos a ser esses «seres exóticos» desse outro tal «Portugal Profundo».

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