Quando «conheci» Millôr Fernandes, ele era, afinal, um tal de Emanuel Vão Gogo. Alguém lia um texto seu, sobre como seria se Deus tivesse criado a mulher antes do homem. O tom coloquial, simples, humorístico não se estranha, sequer. Entranha-se, de imediato. Auto-didacta em quase tudo, em tudo foi bom. Escreveu, pintou, fez humor, criticou (de forma afiada) os políticos, e, pasme-se, também era contra o (des)acordo ortográfico. Presente na internet, no seu «SAITE» e no «twitter», era, acima de tudo, e como alguém o apelidou, um «frasista». Entre muitas outras, ficam duas pérolas, de alguém que fez filigrana com a língua portuguesa, cujo nome resulta, diz-se, de uma má interpretação da caligrafia do conservador. A data de nascimento também não é unânime. Enfim, coisas de humorista. Há coisas que parecem fazer parte do destino. O de Millôr talvez fosse ter uma «caligrafia» diferente. Que uns não compreendem, outros talvez prefiram não compreender. «O aumento da canalhice é resultado da má distribuição de renda». «Fiquem tranquilos os poderosos que têm medo de nós: nenhum humorista atira para matar.»
«Ih! Que é que você está fazendo aí, hem, Todo-Poderoso? Deixa eu brincar com o barro também? Não estrago seu brinquedo, não. Eh, que é isso? Parece uma cara! Ih, parece uma cara igual a um bicho. Parece um macaco, seu! Puxa, você é um craque, Todo-Poderoso. Bota um terceiro olho, bota! Ah, bota! Puxa, você é ruim, não atende! Ora, agora você encompridou o nariz. Estava tão bonitinho! Deixa eu ver, espera; está parecidinho com você, hem, Todo-Poderoso! Ah você o fez à sua semelhança; eu logo vi, estava olhando aí prò espelho de água. Não põe boca, não, põe uma tromba! Ah põe uma tromba, põe! Também, você não faz nada do que eu peço… Deixa eu ver, não ficou mal não. Mas o rosto é áspero. Porquê pêlo no rosto? Deixa ele sem pêlo no rosto, deixa! Só um bigodinho ficava muito melhor. Posso fazer a orelha esquerda? Olha, esta aqui é de outra cor. Bota a orelha de outra cor, bota! Vai ficar bacana. Posso fazer? Eu garanto que vai ficar um amor se você botar orelha de outra cor. Faz as costas prà frente agora. Não, ao contrário. Fica diferente de mim; ele está muito parecido comigo. O animal mais parecido comigo que Você já fez até hoje. Vai ter dois braços também? Ah, não põe dois braços, não. Deixa só eu com dois braços. Faz sem braços e com três pernas. Fica muito mais engraçado. Você não atende nada, hem! Também eu não ajudo mais em coisa nenhuma. Já está pronto? Ficou diferente um pouco de mim, hem! Não é muito, não, mas um pouco diferente ficou. É, não está mal, não, como primeiro. Você vai fazer mais desses? Vai? Que nome vai dar? Homem? Ah, não põe homem, não; esse nome não pega. Põe outro nome! Ih, olha! Você esqueceu do rabo! Este animal não tem rabo?! Ah, vai andar em pé também? Então põe ele em pé pra mim ver. Chi, ficou bonito mesmo! Você deixa eu soprar esse, deixa?»
(Se Deus tivesse criado a Mulher antes do Homem – Millôr Fernandes [Emanuel Vão Gogo])