Quase a terminar a leitura do livro que Mark Twain considerou como a sua melhor e mais importante obra, já algumas coisas vão ficando a pairar. Como é fácil seguir os heróis, deixar-se contagiar por eles, ressuscitar, se for preciso. Mas, quando o herói cai em desgraça, cai sozinho. Deixa de ter ao seu lado todos os que com ele e por ele lutaram. A história não é nova. A Bíblia narra algo parecido. E se olharmos bem, no dia-a-dia não nos faltam exemplos destes. Joana d’Arc passou, em pouco tempo, da ignorância ao Paraíso e ao Inferno. Se quisermos, do nada a bestial e a besta. Assim, sem paragem obrigatória em qualquer apeadeiro. Houve quem dissesse, um dia, que a política é a arte do possível. Uma definição curiosa, mas que permite vários truques de interpretação. O que é possível é sempre discutível, e as convicções de cada um nem sempre estão alinhadas com o ‘possível’ de outros. Vale a pena ler Mark Twain sobre uma personagem que marcou, de forma indelével, a História da Europa. E, nas entrelinhas, reflectir sobre estes esquecimentos, estas mudanças de rótulo, esta forma como a sociedade vai olhando, de maneira radicalmente diferente, para as mesmas coisas. De um momento para o outro.
Já terás reparado que o nosso principal cavaleiro diz muitas coisas sábias e tem boa cabeça para pensar. Num dia em que seguíamos juntos a cavalo, discutíamos os grandes talentos de Joana, e ele disse-me: ‘Mas o maior dos seus dons é que ela tem olhos de ver.’ Ao que retorqui como um tolo, sem pensar: ‘Olhos de ver? Não lhe daria grande importância… todos temos.’ ‘Não’, insistiu ele, ‘são poucos os que os têm.’ Então ele explicou, e percebi o que queria dizer. Explicou que os olhos comuns apenas vêem o exterior das coisas, e assim fazem os seus julgamentos, ao passo que os olhos de ver penetram e lêem o coração e a alma, encontrando neles capacidades que o exterior não prometia nem dava a entender, e que os olhos comuns não detectam. Disse-me que o mais poderoso génio militar está destinado ao fracasso se não tiver olhos de ver, ou seja, se não souber ler os homens e escolher os subordinados com base num julgamento infalível. É como que uma intuição que lhe permite ver que este homem é bom para a estratégia, aquele para a refrega e o assalto audaz, aqueloutro para uma paciente persistência, e escolhe cada um para o devido lugar, e vence, enquanto o comandante sem olhos de ver dá a cada um deles o lugar que pertence a outro, e perde. Ele tinha razão quanto a Joana, e eu percebi.
‘Joana d’Arc’ – Mark Twain