Em dia de Sexta-Feira Santa, é talvez curioso que ressoe, latente, o «Cântico Final» de Vergílio Ferreira. Esse cântico que, mais do que religioso, é um cântico da arte, da vida enquanto percurso, da morte (quantas vezes esperada) como inevitabilidade a que fugimos. Um cântico polifónico. Umas vezes com acompanhamento, outras apenas com a voz de quem o canta. E se, por vezes, explode em cores espalhadas por uma tela, outras é lúgubre, como um salmo da Paixão, entre paredes de pedra de há muitos séculos. Quando, quase estranhamente, se gosta, é-se talvez mau juiz. Mas fazer este percurso, ouvir, por dentro, este cântico que quase caminha em contra-mão com a ideia da Páscoa, fazendo dela a sua afinação, é uma das formas de fazer essa passagem. Entre a morte e a vida, ou ao contrário. Ou apenas percorrer.
«O primeiro nevão aparecera com o anúncio do inverno; e durante dias não cessou a dança fantástica dos flocos brancos na distância raiada do horizonte. Lago dos cisnes, aceno longínquo, aceno de sempre. Através das janelas do seu quarto, Mário assistia pela última vez a essa visita de uma certa inocência maravilhada – dádiva miraculosa dos velhos contos de fadas à pobreza da montanha, ao seu pobre corpo destruído. Mundo insondável das finas vibrações, lúcida visão de um riso de outrora, fugidio aceno de uma verdade de origens – como vos amo, como vos lembro! (…) Sentia-se profundamente bem, quando as dores o esqueciam um pouco, sentia um prazer quente, como um bafo na face, em olhar a neve que não cessava de cair, em escutar essa vibração íntima do silêncio que alastrava com ela sobre a terra. E ao ouvir uma palavra erradia dos vultos breves que passavam no caminho, ao pressentir de novo essa obscura união da montanha ao frémito dos astros, de tocar, como numa suspeita, o intrínseco recolhimento do mundo a uma hora primordial de verdade indizível – qualquer coisa mais forte e intocável do que uma presença na noite o gravava de um apelo de paz, de resignação, de desistência, como a evidência serena de um limite atingido.»
Vergílio Ferreira (Cântico Final)