16 de Abril de 2010 – Prendas e subornos, contadas por Moita Flores

O texto já é antigo. Foi publicado em finais de Março no jornal «Correio da Manhã», na coluna de opinião de Moita Flores. Chegou hoje por e-mail, e dá que pensar. Entre prendas e subornos que quem está exposto ao público (e lhe gere os recursos) costuma receber, há várias «nuances». Há gestos sinceros, cujo valor é, quase sempre, mais simbólico que outra coisa. Há gestos de presença, para que não se esqueça que o outro existe. Há gestos de interesse velado, do género de «dar um presunto para receber um porco». Há de tudo. Moita Flores sugere, contudo que se dê um fim condigno e asumido a tudo isto (tudo isto, excepto as flores, sinceras, singelas e afectuosas). Se os políticos pensassem assim, mais do que dizerem, era capaz de não ser necessário lutar-se contra a corrupção por decreto. Sem esquecermos que quem legisla é quem, na mais gritante fatia dos casos, está envolvido nas histórias mais significativas. Vale a pena ler.

PRENDAS E SUBORNOS

«Quando tomei posse como presidente da Câmara de Santarém fui confrontado com a quantidade de prendas que chegavam ao meu gabinete. Era a véspera de Natal. Para um velho polícia, desconfiado e vivido, a hecatombe de presuntos, leitões, garrafas de vinho muito caro, cabazes luxuosos e dezenas de bolos-rei cheirou-me a esturro. Também chegaram coisas menores. E coisas nobres: recebi vários ramos de flores, a única prenda que não consigo recusar.

Decidi que todas as prendas seriam distribuídas por instituições de solidariedade social, com excepção das flores. No segundo Natal a coisa repetiu-se. E então percebi que as prendas se distribuíam por três grupos. O primeiro claramente sedutor e manhoso que oferecia um chouriço para nos pedir um porco. O segundo, menos provocador, resultava de listas que grandes empresas ligadas a fornecimento de produtos, mesmo sem relação directa com o município, que enviam como se quisessem recordar que existem. O terceiro grupo é aquele que decorre dos afectos, sem valor material mas com significado simbólico: flores, pequenos objectos sem valor comercial, lembranças de Natal. Além de tudo isto, o correio é encharcado com milhares de postais de boas-festas que instituições públicas e privadas enviam numa escala inimaginável. Acabei com essa tradição. Não existe tempo para apreciar um cartão de boas–festas quando se recebe milhares e se expede milhares.

Quanto às restantes prendas, por não conseguir acabar com o hábito, alterei-o. Foi enviada nova carta em que informámos que agradecíamos todas as prendas que enviassem. Porém, pedíamos que fosse em géneros de longa duração para serem ofertados ao Banco Alimentar contra a Fome. Teve um duplo efeito: aumentou a quantidade de dádivas que agora têm um destino merecido. E assim, nos últimos dois Natais recebemos cerca de 8 toneladas de alimentos.

Conto isto a propósito da proposta drástica que o PS quer levar ao Parlamento que considera suborno qualquer oferta feita a funcionário público. Se ao menos lhe pusessem um valor máximo de 20 ou 30 euros, ainda se compreendia e seria razoável. Em vários países do mundo é assim. Aqui não. Quer passar-se do 8 para o 80. O que significa que nada vai mudar. Por isso, fica já claro que não cumprirei essa lei enquanto funcionário público. Enquanto autarca aceitarei prendas que possam ser encaminhadas para o Banco Alimentar. E jamais devolverei uma flor que me seja oferecida».

(Francisco Moita Flores, in «Correio da Manhã»)

Foto: C.M. Santarém

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