Por ser algo que nos é intrínseco e imediato, de vez em quando esquecemo-nos do poder da palavra. A palavra é como uma bala que se dispara. Depois de sair da pistola, não dá para ir a correr muito, agarrar nela e voltar a meter no tambor. A palavra, depois de disparada, é como a bala, que se multiplica em pequenos pedaços de chumbo, compactos, letais, por vezes. E o que muitas vezes nos acontece, é que disparamos sem pensar muito bem nas consequências, ou até mesmo na potência da bala. Lê-se, por estes dias, em alguma comunicação social, que o Governo (atribuamos caras às coisas, António Costa) terá dito que este ano ‘não haverá Páscoa para ninguém’. Façamos como Lenine, e andemos dois passos para trás, para podermos avançar de forma mais firme. A determinada altura, circularam notícias sobre a morte do escritor Mark Twain, que, em comentário às mesmas, terá dito: ‘parece-me que as notícias sobre a minha morte são manifestamente exageradas’. A curta frase de António Costa parece, igual e manifestamente exagerada. A Páscoa, como qualquer outro marco importante da vida cristã, não precisa de manifestações externas ou de convivialidade exagerada para acontecer. Lutero tinha uma certa razão quando pregava uma igreja (entenda-se, uma fé) individual ou individualizada, em que não seriam precisos templos majestosos para celebrá-la, da mesma forma que Cristo disse ‘onde dois ou três estiverem reunidos em meu nome, Eu estarei no meio deles’. A fé e a sua manifestação, seja qual for a confissão religiosa que se professe, não precisa de sinais exteriores ou superficialidade. Antes, deve radicar no mais íntimo de cada um. Só se pode manifestar ou dar aquilo que se tem. Por isso, nos tempos que correm, a fé é forçosamente individual, e a sua manifestação restrita. Não é possível rasgar, por decreto governamental, as folhas do calendário dos dias em que os cristãos experimentam a conversão, a passagem, a transformação da morte em vida. Tal como não é possível rasgar, por decreto governamental, as folhas do calendário dos dias em que os judeus celebram o Hanukkah. Tal como não é possível, por decreto governamental, abolir o Eid al-Adha dos muçulmanos. Que o Governo diga que não devemos promover festas com muitas pessoas à mesa, a pretexto de uma comemoração, é uma coisa. Dizer aos cristãos que, na sua igreja íntima e individual, não poderão reviver os passos da Cristo até ao Calvário, a sua Paixão e Ressurreição, é, para além de uma profunda ignorância, no mínimo, risível.