18 de Março de 2015 – Diz o meu nome…

say-nameHá dias em que parece que nenhuma das nossas palavras nos serve. Quando nos aparecem, avassaladoras, as de alguém que parece estar a dizer-nos exactamente o que queremos dizer. Foi assim hoje, com Mia Couto. «Diz o meu nome». É assim que começa o verdadeiro turbilhão de música nas palavras, de sensações que flutuam a cada frase. A pedir que digas o meu nome. Que me digas, no meu nome, como se cada sílaba te queimasse. Que me digas com suavidade, como se fosse uma confidência. Que me digas como quem vê. Como quem olha por dentro, como a Blimunda de Saramago. «Diz o meu nome». E assim, quando o disseres, eu, esquecido de mim, ouço-te, ouço-me pela primeira vez. E tu sorris. E o mundo começa.

Diz o meu nome
pronuncia-o
como se as sílabas te queimassem os lábios
sopra-o com a suavidade
de uma confidência
para que o escuro apeteça
para que se desatem os teus cabelos
para que aconteça

Porque eu cresço para ti
sou eu dentro de ti
que bebe a última gota
e te conduzo a um lugar
sem tempo nem contorno

Porque apenas para os teus olhos
sou gesto e cor
e dentro de ti
me recolho ferido
exausto dos combates
em que a mim próprio me venci

Porque a minha mão infatigável
procura o interior e o avesso
da aparência
porque o tempo em que vivo
morre de ser ontem
e é urgente inventar
outra maneira de navegar
outro rumo outro pulsar
para dar esperança aos portos
que aguardam pensativos

No húmido centro da noite
diz o meu nome
como se eu te fosse estranho
como se fosse intruso
para que eu mesmo me desconheça
e me sobressalte
quando suavemente
pronunciares o meu nome

Mia Couto, in ‘Raiz de Orvalho’

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *