Eu entrava no autocarro. Ainda na partida, e já a pensar na chegada. Porto. Batalha. O motor já funciona, e, a passo lento, a imagem de Arouca já se aproxima, apesar de a viagem ainda estar no início. Ao fundo, ainda tempo para ver um homem. Aparentemente sem-abrigo. Cabisbaixo. Alheado. Sendo o que parece ser. Das suas mãos, lentas, saem pequenos pedaços de pão. Aos pombos. A ironia do paradoxo. O sem-abrigo a dar o pão, que poderia estar a comer, aos pombos. A imagem ficou. Até hoje. A uma altura em que Fernando Ulrich nos compara aos sem-abrigo. Pois bem, eu, enquanto sem-abrigo metafórico, queria dizer-lhe, senhor Ulrich, que me deixe ser sem-abrigo com a minha arte. Com a minha arte de partilhar. De, no meio do marasmo, do desânimo, da dificuldade, tentar, pelo menos tentar, fazer algo para mudar as pessoas a partir de dentro, e não a partir da conta bancária. Sim, se é assim que coloca as coisas, eu sou sem-abrigo. Feliz. Sem dever a cabeça ao capital. Sem ter de pôr óculos na ponta do nariz para analisar balancetes. Porque a felicidade das pessoas, essa a que eu tento acrescentar juros, não creio que a encontre em nenhum dos documentos onde vai despejando a sua apenas aparente riqueza.