Fui de novo ao baú, buscar mais um texto com mais de 10 anos. Estávamos quase no final do trajecto académico, e exercitávamos o género crónica. Na altura, lia Agostinho da Silva, e pensava em como alguns problemas nos são colocados como camas-de-gato. Ao mesmo tempo difíceis, e tão fáceis como um simples cordel. Só que emaranhado com uma ordem que o torna complicado. Apesar de simples.
Certo dia não dormia. Pensei. Queria ser algo que não dormisse, ou dormisse para sempre. Uma árvore, uma pedra, qualquer coisa. Depois quis ser grande. Sim. Grande, famoso, que me reconhecessem pelo trabalho que fizesse. Em suma, queria ser.
Todos os dias regressava a casa, todos os dias não dormia logo à primeira, todos os dias a mesma cama de gato. Pensava, no escuro. Afinal, saio todos os dias, todos os dias regresso, todos os dias vou procurar coisas, coloco o corpo em comunicação com o que lhe é exterior. Cada dia, cada minuto era uma cama de gato.
Cuidadosamente, fui metendo os dedos nos cordéis e puxando. Houve dias em que resolvi e passei o cordel para as mãos de outros meninos. Outros em que o trouxe para casa, talvez os dias em que não adormecia.
Dia a dia, o cordel ia sendo maior. E eu puxava-o e via os outros puxarem-no também. Era preciso dominarmos o cordel, manejá-lo com cuidado e alguma sagacidade. Às vezes também olhava para trás, para quando o cordel era mais pequeno. E queria que fossem outros a puxá-lo por mim.
Afinal, todos os dias eram nada mais do que um teste à astúcia, uma procura da melhor forma de manobrar o cordel. Tudo passava também pelas mãos daqueles com quem jogávamos. Fui passando o cordel de mão em mão e trazendo-o de novo. Lanço-o a esse lado, daí partirá para outras mãos e voltará e irá de novo. O verdadeiro segredo estará, muito simplesmente, na forma de puxar o cordel. Polegar e indicador juntos. Cordel no meio deles, de baixo para cima. Já está. Amanhã jogamos de novo…
«As coisas acontecem, sucedem e a gente aproveita ou não. Há um jogo de meninos que, em Portugal, se chama cama de gato: os meninos atam um cordel em círculo, depois fazem assim com a mão, vem outro e faz uma complicação qualquer, mete o dedo e faz outra complicação, vem outro ainda e quanto aos dedos faz assim e tira, e forma outra figura. Este jogo chama-se cama de gato. Então, eu acho que a vida vem de vez em quando e apresenta-nos o problema, olhamos e vemos como é que havemos de tirar, depois metemos os dedos, fazemos assim e sai outra coisa. É que toda a nossa habilidade é tornar a ser crianças para ver como é que sai a cama de gato.»
(Agostinho da Silva – Vida Conversável)