Algures em Janeiro de 2001, escrevi um texto em que contava uma viagem a Salamanca, realizada poucos anos antes. Na altura, foi uma espécie de exercício. Bem sucedido, pareceu. Olhando para trás, passaram cerca de 10 anos. Muito mudou. Outras coisas, nem tanto. Lembrei-me de Salamanca, porque foi uma viagem de libertação. Não fomos muito longe. Excepto no pensamento.
Salamanca. É difícil não se apaixonar por ela. Será talvez a nossa ânsia interminável de ressuscitar um passado de contos de reis e rainhas, de materializar toda a música e todo o cheiro a medieval que nos envolve quando procuramos esse passado e encontramos dele uma pequena ponta que nos dá a ilusão de o termos descoberto.
Não importam datas ou qualquer outra prisão ao tempo. Antes o espaço, a personalidade de uma cidade, a intemporalidade, tudo o que resiste à fruição de um momento e nos permite seguir os passos de outros, estar em outros tempos nos mesmos sítios. É inexplicável a sensação de se sair do desconhecido em descoberta do que apenas se vê muito ao longe.
Contudo, olhando todas estas casas, facilmente se vêem os mercadores justando negócios pelas ruas, homens e mulheres que procuram fazer renascer os seus espíritos.
Olhares sobre a cidade
O fim de tarde algures num espaço próximo da Catedral. Belas mulheres cruzam os caminhos imaginários de um passeio largo. Estranha-se, depois entranha-se o sabor do falar dos espanhóis. Os corpos procuram a luz e não têm dificuldade em encontrá-la. O dourado dos edifícios em pedra de Villamayor reflecte um céu que se adivinha estrelado. Por isso a chamam “cidade dourada”.
Como que cantando as belezas da cidade, cantam-se as belezas de todas as mulheres, jovens e menos jovens, que tocam este final de tarde. São interessantes as reacções a estas pequenas serenatas. Algumas das belas donzelas fogem, outras deleitam-se. Tal como outrora, os trovadores mostram os seus dotes e colhem recompensas pelo seu desempenho.
A noite chama-nos à “Plaza Maior”, onde toda a cidade se congrega, se procura e se encontra. Verdadeira miscelânea de culturas, a noite adivinha-se de descoberta mútua.
Ao longe, uma banda de música vai agarrando fortes melodias populares espanholas, inundando toda a praça e tirando toda a cor de uma bandeira que se agita no centro de um dos lados deste quadrado de paredes douradas.
Mas outro foco de atenção surge. Os portugueses fazem a festa, sentados no chão, no lado oposto. Duas jovens agitam os corpos, iniciando uma espécie de dança cigana a que as guitarras dos portugueses não conseguiram resistir.
Rostos da noite
Desta mistura engraçada surgem vários rostos que se virão a tornar conhecidos. Maria, nome português, rosto de uma beleza invulgar. Talvez por isso a atenção e uma aproximação quase incontrolável.
Maria conduz, com algumas amigas, um pequeno grupo de portugueses pelas ruas da noite de Salamanca. Faz questão de separar este roteiro nocturno de um outro que promete para a manhã seguinte.
O ambiente da noite é quente, os corpos transbordam energia, os rostos demonstram alegria.
Depois de alguns bares visitados, Maria despede-se. Entra num autocarro e coloca a sua beleza a uma das janelas. Rapidamente, emaranha-se no aglomerado dourado ao fundo e desaparece.
Uma visão de Ballester
Amanhece rapidamente. Todo o tempo é pouco para absorver tudo o que a cidade tem para dar. Guardaram-se para este dia as últimas visitas a locais de referência.
Um olhar sobre a fachada da Universidade e o desejo de um dia voltar, talvez com um objectivo diferente. Surge a vontade de se ser parte da cidade dourada, haurir a sabedoria destas paredes, deste brasão, de toda a História que aqui se revive hoje.
Depois de uma rápida conversa com dois empregados de um café, junto à “Plaza Maior”, aparece Maria, acompanhando o nascer do sol.
Depois de mais um passeio pela cidade, procurando todo o ouro que não havia sido visto, o regresso à praça.
Grande aparato, muitos jornalistas e uma voz envelhecida acompanhada de aplausos sentidos. Alguns minutos depois surge, muito próxima, a imagem de um homem igual a muitos outros. Envelhecido, uma experiência de vida bem visível no rosto. Ali, a dois passos de mim, completamente desprotegido, ao contrário do que seria de se esperar.
Alguém ao meu lado sussura: “Aquele homem chama-se apenas Gonzalo Torrente Ballester!”
O início de uma outra viagem
De volta, tudo se arruma de novo algures atrás do agora. É nesta altura que a viagem termina e se inicia de novo. Não há tempo ou qualquer outra coisa capaz de nos prender a memória e a imaginação.
São essas imagens, únicas e inesquecíveis, que ficam guardadas e nos permitem ali regressar quando quisermos. Elas permanecem lá, longe, à espera de serem descobertas de novo.