Eduardo Lourenço foi acumulando vários manuscritos sobre música, sobre o que a música lhe foi despertando. Quem está por dentro dos meandros da estrutura que dá corpo aos sons, talvez nem sempre consiga aperceber-se do todo, porque está dentro, e não consegue, simultaneamente, ter a experiência de quem está de fora. Eduardo Lourenço tem, além deste, outro condão. O de, sendo «leigo» musical, não ser, de todo, absolutamente, leigo com as palavras, com o pensamento e com a forma como o pensamento se traduz em palavras. «Tempo da Música, Música do Tempo» lê-se à velocidade de um diário. Intimista. Feito de impressões. E de música, que pode, facilmente, ser reproduzida na nossa mente, à medida que se seguem as palavras. É, em última análise, diz o autor, manifestação de Deus. Eu acredito que sim.
«O que eu sou como ser mortal (o que todos somos), está contido na melancolia absoluta do allegretto da Sétima Sinfonia. Mas o que desejaria ser, o que não tenho coragem de ser, só se revela nesta Suite em Si Menor, de Bach. Diante desta torrente luminosa devia depor a minha velha pele, esta pele de que só a música me despe num instante, deixando-me nu e redimido, mas que no instante seguinte afogo em trevas. Delas só um Deus me poderia libertar. Digo Deus sabendo bem que esse absoluto que me atrevo a invocar é ainda o supremo álibi. É de mim, das ardentes seduções do meu profundo ser, que não quero ou de que não sou capaz de abdicar. Queria ir por um caminho de rosas para aquele sítio onde sei que me foi fixado encontro. E ninguém lá chega nunca sem antes morrer para si mesmo.»
(Eduardo Lourenço)