Nuno Pacheco escreve, hoje, no «Público», um texto feroz contra o (des)acordo ortográfico. Bem sabemos que, como alguém dizia, as opiniões são como as vaginas, mas não é por isso que não devemos tê-las (salvo seja). De facto, o novo «bom português» não deixa de ser questionável, e talvez por isso, e pelo facto de este (des)acordo ter sido negociado no maior secretismo dos gabinetes, para nos ser servido pronto a usar, levanta-nos muitas dúvidas, para além das que resultam de termos de voltar a aprender a escrever a nossa própria língua. Nuno Pacheco dá logo um exemplo. «O lote de livros, livrinhos e livrecos editados para que nada nos falte em matéria de aplicação e conhecimento da aberração a que se convencionou chamar acordo ortográfico não pára de aumentar». Mas, se a frase fosse «(des)acordada», seria «não para de aumentar». Enfim. Valham-nos os conversores informáticos, que nos podem facilmente pôr a falar «acordês». Livrinhos de instruções e programas serão, pois, boas fontes de negócio, mas também de «emburrecimento». E as obras literárias, também vão (des)acordar? A forma como os escritores as escreveram também vai ser adulterada para «acordês»? E, por fim, fica também a questão sobre se quem nos «vendeu» isto saberá escrever bem em português de Portugal.
«Pois é o que asseguram os defensores do “bom português”, muitos dos quais (senão mesmo a maioria) chumbariam em qualquer exame primário do português corrente. O que interessa, para eles, é que a coisa se cumpra, a pretexto de salvar o acordo. O que nem é difícil. Basta a qualquer analfabeto instalar no computador um conversor como o Lince para, com um simples toque de tecla, escrever “acordês” e ficar contentíssimo».
«Mas voltemos a Saramago. O livro foi acabado de escrever a 5 de Janeiro de 1953 e só agora se edita devido a peripécias já explicadas e que, neste caso, não são relevantes. Relevante, mesmo, é uma pequena frase escrita na página 6: “A presente edição reproduz fielmente o original.” Fielmente? Que noção de fidelidade é esta? Como se pode reproduzir “fielmente” um texto onde, na página 224, se lê: “tudo isto e mais a recetividade, o aguçamento da perceção”; ou “o pai aparecia-lhe com outro aspeto”; e na página 229: “Quis poupar o filho àquele espetáculo degradante”; e na página 394: “(…) que a atividade não leve a cometer vilanias”; ou “ativo sim, mas lúcido”. Há dezenas e dezenas de exemplos de idêntico calibre. Ora como podia Saramago, em 1953, ter escrito tal coisa, se o inefável acordo só surgiu nos anos 90? Como é possível assassinar “fielmente” uma escrita sem que ninguém reaja ou, pelo menos, exija que seja retirada do livro a mentira óbvia (ou será “óvia”?) resumida na tal frase da página 6? »
(Nuno Pacheco, jornalista, em texto publicado hoje no jornal «Público»)