6 de Maio de 2011 – Leituras da reconstrução

Há leituras assim, que nos entram pela retina dentro no momento mais curioso que possamos imaginar. Assim foi com «Signo Sinal», de Vergílio Ferreira. Dos outros treze ou catorze livros lidos do mesmo autor, colhi um estilo próprio de pensar e de escrever, expressando de forma simples e pertinente o que muitos de nós já pensámos, mas a que nunca demos a devida importância. «Signo Sinal» relata a reconstrução de uma aldeia, depois de um terramoto. O terramoto teria sido o 25 de Abril, mas podia muito bem ser o «bulldozer» de José Sócrates. A aldeia de Luís é como se fosse um país, que se pode, finalmente, reconstruir, mas onde cedo chegam políticos, profetas, sindicalistas e burocratas acabam por complicar a trajectória. Luís lembra que a casa é o centro de tudo, que apesar de uma capa nova, as pessoas são as mesmas de antes.  «Talvez destruam tudo outra vez do que construíram, porque escutam uma ordem nova e certa e irrecusável desde o ignorado da vertigem», como costumam fazer, sempre, os homens, Uma metáfora curiosa, nos tempos que correm, na repetição da história, no enjoo dos dias.

«E, com efeito, as obras recomeçaram. Outra vez os operários regressavam dos subúrbios de desemprego e dos retroactivos salariais, o comércio reanimou, havia putas novas vindas de fora. E imediatamente pás, picaretas e escavadoras, os cilindros de terraplanagem, uma grande rede de trincheiras foi-se abrindo para os alicerces. Um homem desconhecido, vestido de bruto, botas ferradas, um fato grosso, eu via-o com papéis na mão, ia de grupo em grupo dar instruções. Punha-me a olhar o emaranhado das valas, a imaginar a aldeia reconstruída e as distâncias e o jogo possível das relações humanas. Imaginava as ruas, as casas reerguidas, o reencontro dos homens consigo, com os seus sonhos e esperanças e enredos e conflitos, o envelhecimento das coisas pelos séculos e a nova ordenação da vida sob a eternidade dos céus. Então olhava com terror a maravilha os construtores do destino, delegados visíveis de uma ordem antiquíssima, mandatários de um império oculto, realizadores magníficos dos sinais tangíveis do signo que nos marcou. Era belo assim ouvir o estrépito das máquinas, dos motores, escutar a pulsação que vinha deles, no arranque do esforço dos homens, como a voz audível da grande voz inaudível, a que na zona obscura e impensável do homem, na anterioridade de tudo quanto é anterior, na distância máxima do horizonte dos horizontes, lhe ordena os passos a uma certeza animal. Porque as veredas são muitas e a rede possível de todos os desvios possíveis, mas não o sentido final da sua ordenação».

(Vergílio Ferreira, in «Signo Sinal»)

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